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Anathema, 13.03.21
" A minha casa é feita de livros que li,
que não li
e alguns que talvez nunca leia.
Em todos nasci e renasci,
em todos vivo e me deito
em todos adormeço e acordo.
Todas as manhãs lhes digo bom dia
e levo-os na mão ao sair
para poder abri-los
em todas as breves ou longas esperas
que a vida me ofereça.
Lombadas, memórias, momentos,
lágrimas guardadas entre páginas.
Bebo em cada um coisas de amor e de saber,
atravesso o mundo em múltiplas viagens.
Fico a conhecer coisas que me levam à frente e atrás,
ao castelo conquistado pelos guerreiros de
D. Afonso,
ao massacre dos judeus no Rossio,
aos rapazes dos tanques
no Terreiro do Paço
de um Abril luminoso.
A minha casa é feita de livros.
Naquela prateleira mora Melquíades,
o cigano de Macondo.
Na outra continua a morrer eternamente
Ivan Ilitch.
Mais à frente o escrivão Bartleby
continua a preferir não estar, não ser,
não fazer.
Aqui, neste recanto, junto a mim,
ardem docemente os versos de Neruda,
dançam os de Lorca,
voa a ironia de Prévert,
entorna-se o vinho
na voz de Omar Khayyam.
Carlos da Maia desce o Chiado
pelo braço da irmã
na estante do corredor.
Atrás deles vai o Tom Sawyer a correr
com um livrinho do Ferlinghetti na mão.
O Ary anda à procura de uma garrafa de gin
e, se de repente, se ouvir tasquinhar é por certo
o O´Neill a espreitar os tiques de quem passa
a caminho da cozinha.
A minha casa é feita de livros
e cada livro é um navio a largar
dos dias da minha infância
a caminho de um tempo que vai chegando.
E eu sei
que é a minha avó que em cada livro me penteia
e me deixa para sempre cercado pela geografia azul
das suas brancas mãos."
José Fanha. Os Livros