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Anathema

"Todos elogiam o sonho, que é o descansar da vida. Mas é o contrário, Doutor. A gente precisa do viver para descansar dos sonhos"

Anathema

"Todos elogiam o sonho, que é o descansar da vida. Mas é o contrário, Doutor. A gente precisa do viver para descansar dos sonhos"

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Anathema, 23.12.20

 

 

O NATAL NA PRISÃO
Estava presa desde que matara o marido com um tiro.
Descobriu que ele violava a filha. Além do mais a violência era a única maneira dele estar.
A cela era compartilhada com mais duas jovens mulheres.
A Adriana, que abandonara o filho recém nascido.
A Paula que pusera veneno na sopa do companheiro.
Os rostos adquiriam a cor dos sem abrigo.
O Natal pelo menos devolvia-lhes um escasso bacalhau com um pouco de bolo rei.
Quando podiam ir ao pátio fumavam e riam-se no desaire de momentos esporádicos.
Havia um padre que as visitava. E uma professora de português que as incentivava a escrever.
Evelina morria de saudades da filha.
(Estava com os avós).
As guardas, apesar da aparente dureza, eram empáticas.
Surgira a nova guarda ,a Helena.
Jovem e plena de sonhos.
Gostava de as escutar e havia nela um toque de suavidade.
As camas eram duras.
(Elas sentiam frio).
Helena trouxera mais mantas.
Metiam-se com ela. Se tinha namorado. Ela ria , despojada.
A professora de português oferecia bombons.
Perguntara-lhes o que mais lhes faltava.
Os filhos e o ar livre.
Evelina, com os olhos vermelhos, despejava tudo o que o falecido marido fizera à filha.
Matar não é nunca a solução, referia a professora.
- Sabe lá quantas vezes fui a associações para me ajudarem. Até à polícia fui. Nasci pobre. Nunca tive nem terei nada.
No fundo do átrio uma árvore de natal.
Evelina não tinha sido uma filha desejada. Também ela fora um erro. Um tiro no escuro. Um simples engano.
Desconhecia o que era o amor antes de ser mãe.
(Uma vida amarga ).
Lembrava-se de um passeio de carro até uma praia com rochas densas. O cheiro da maresia.
Lembrava-se, a custo, do primeiro homem que a desvirginou com a brusquidão de um martelo implacável.
Fizera vários abortos. Com mezinhas que a Ti Vitória lhe fornecia.
Sofrera e sofria.
A vida era boa para os desejados.
Não para os que escavavam no chão.
Fora empregada doméstica em casas de senhoras com dores de cabeça e muita preguiça.
Não conhecera o carinho.
Não sabia isso das depressões que afetava os endinheirados.
Nunca fora bonita.
(Tinha uma tez de cigana).
Sabia de cor o que eram os olhares de desaprovação.
Sabia da indiferença.
Hoje, naquela prisão gineceu, as palavras da professora e os bombons de chocolate enchiam-lhe o dia parco.
O Natal era para os ricos.
Ela ali era mais um mosaico da guerra dos que são o nada.
Uma espera íngreme.
Um novelo de ocasos e espinhos.
 
ceciliabarreira